Homenagem aos 45 anos de Cadernos Negros

 

Quilombhoje Literatura recebeu Salva de Prata em reconhecimento à importância das 44 publicações de Cadernos Negros

Na sexta-feira, dia 14 de abril a vereadora Elaine Mineiro e a mandata coletiva Quilombo Periférico, representada pelos covereadores Débora Dias, Julio Cézar de Andrade, Erick Ovelha e Alex Barcellos, realizaram a sessão solene de entrega da Salva de Prata em homenagem aos 45 anos de Cadernos Negros. Na oportunidade o coletivo literário Quilombhoje, responsável pela curadoria, edição, publicação, encadernação e distribuição das 44 edições publicadas, representado por Esmaralda Ribeiro e Márcio Barbosa, recebeu a honraria em reconhecimento ao trabalho dedicado na valorização e reconhecimento de uma produção literária de autoras e autores negros.

O evento aconteceu no Plenário 1º de Maio da Câmara Municipal de São Paulo, com a participação especial da escritora Conceição Evaristo entre outras importantes escritoras e escritores que marcaram a trajetória destes 45 anos da linha editorial Cadernos Negros, uma das principais e mais antiga coletânea de contos e poemas, voltada para a publicação e difusão da literatura negra e afro-brasileira.

Foi uma noite histórica para o movimento negro literário e afro-brasileiro, além da participação especial de outros autores que participaram da criação de Cadernos Negros ou foram revelados nessas páginas como, o jornalista, Oswaldo de Camargo, a poetiza Miriam Alves, Luiz Silva (Cuti) e Akins Kintê, o evento reuniu mais de 200 pessoas de diversos pontos da cidade que estiveram presentes para prestigiar e participar da homenagem. A cerimonia foi ministrada pela poetiza e Fundadora do Coletivo Elo da Corrente,  Raquel Almeida e Abilio Ferreira, que além de participar de sete das edições de Cadernos Negros é fundador e coordenador do Instituto Tebas de Educação e Cultura. O encontro também contou com intervenções artísticas de saraus, slams e coletivos artísticos-culturais das periferias da cidade.

Para Oswaldo de Camargo a iniciativa honra uma história que foi fundamental para a valorização de autoras e autores negros que tiveram a oportunidade de publicar pela primeira vez. “O  caderno tem esse passo. Você pode, tente e muitos que tentaram não pararam, e mesmo aqueles que só publicaram nos cadernos, têm o seu mérito, houve um momento que expressaram o que sentiam e não sabiam o que aconteceria. Porque essa é uma das angústias de quem escreve, você nunca sabe o que vai acontecer com o que você escreveu”, disse Oswaldo.

Conceição Evaristo, considerada uma das maiores autoras da literatura afro-brasileira contemporânea lembrou que sua primeira publicação foi na edição 13 de Cadernos Negros, também foi lançada na Câmara Municipal de São Paulo em 1990. Ela exaltou a longevidade da iniciativa mencionando a presença de Oswaldo de Camargo e da jovem autora, Mel Duarte no  mesmo recinto fazendo o prenúncio da continuidade de Cadernos Negros. “O Quilombhoje cria uma uma nova forma de expressar, de viver e de compor o texto literário. Acho que o Quilombhoje deixa uma prática de vivência coletiva para os mais jovens, acho que o prêmio maior, para qualquer pessoa que acompanha a trajetória de Cadernos Negros, é a confirmação daquillo que nós temos falado sempre: o futuro é ancestral, os sonhos que todos nós tivemos durante tanto tempo se realiza hoje com os mais jovens que estão aí potencializando a nossa voz” falou Conceição em uma breve consideração pedindo para completar sua fala num outro momento contando uma história, que foi um do pontos altos do evento, quando a escritora voltou para recitar um trecho de sua obra Olhos D’Água, emocionando a todos os participantes.

Para a autora Miriam Alves, Cadernos Negros e Quilombohoje é a universidade que ela não teve na vida. “Muitos de vocês também não tiveram, mas hoje vocês podem contar com 45 anos de várias gerações escrevendo em Cadernos Negros”, disse a autora. Luiz Silva (Cuti) também dividiu suas experiências como autor das publicações de Cadernos Negros e falou sobre os desafios de produzir escrever e participar das construções do Quilombhoje escrevendo, editando e publicando coletivamente.

Esmeralda Ribeiro destacou que só mesmo um mandato coletivo como o Quilombo Periférico a partir de um olhar de dentro e de fora da cultura poderia mostrar sensibilidade, respeito e reconhecimento da grandeza da historia de Cadernos Negros dando oportunidade para a maioria dos ‘quilombhojeiros’ para falar das suas trajetórias. Márcio Barbosa aproveitou a oportunidade para agradecer pelo apoio de todos os presentes no evento, aos escritores que publicaram nas 44 edições e ao leitores que apoiam financeiramente aos Cadernos Negros.

Sobre o Quilombhoje e os Cadernos Negros

Ao percorrermos as páginas da primeira edição dos Cadernos Negros, através do qual se visa à afirmação de negras raízes realçando-se, entre estas, a relação entre África e diáspora, nos defrontamos, logo de início, com um questionamento instigante: “E nós, brasileiros, de origem africana, como estamos?”. E, a resposta: “Estamos no limiar de novo tempo. Tempo de  África  vida  nova,  mais  justa  e  mais  livre  e,  inspirados  por  ela,  renascemos  arrancando as máscaras brancas, pondo fim à imitação”.

O ano era 1978, anos de chumbo e ditadura militar. 90 anos da promulgação da lei Áurea e no Centro de Cultura e Arte Negra, o CECAN, em São Paulo, um grupo de jovens, homens e mulheres negras que produziam literatura, se reuniram para criar uma publicação em que pudessem expor suas criações literárias. Nasceram ali, os Cadernos Negros.

A primeira edição foi publicada em formato de bolso e reuniu oito poetas: Luiz Silva (Cuti), Jamu Minka, Henrique Cunha Jr., Ângela Lopes Galvão, Eduardo de Oliveira, Hugo Ferreira, Celinha e Oswaldo de Camargo. Antes de custear a própria publicação, ofereceram para diversas editoras que se recusaram a publicar. Vendida de mão em mão, a publicação obteve um retorno expressivo daqueles que a acessaram, agregando cada vez mais pessoas que queriam se aquilombar em Cadernos Negros. 

A grande repercussão e ampliação da série Cadernos Negros conduziram Cuti, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina e Abelardo Rodrigues, escritores precursores da série, ao aprimoramento da organização coletiva, tendo em vista, viabilizar a publicação anual da série, bem como, visibilizar e qualificar a discussão sobre a produção literária afro-brasileira. Desse processo, no ano de 1980 fundaram o Quilombhoje Literatura.

Das primeiras edições, destacam-se escritores como Conceição Evaristo, Carlos Assunção, Luiz Silva o Cuti e Oswaldo de Camargo. 

Cadernos Negros hoje

Passados 43 anos desde a sua fundação, o Quilombhoje Literatura atua como um importante coletivo literário e como a editora responsável pela publicação anual da série Cadernos Negros, trabalho atualmente coordenado pelos escritores e ativistas Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa, com a colaboração de uma equipe de voluntários. Um deles, o Cosme, que percorre diversos eventos literários da cidade de São Paulo, divulgando e comercializando as publicações.

Através de um chamamento público, os autores interessados em publicar enviam seus textos. Estes são avaliados por uma criteriosa banca, que seleciona os trabalhos aptos à publicação, processo fundamental para manter a qualidade literária e a seriedade do processo de curadoria editorial. Os autores selecionados participam do financiamento coletivo para a publicação e lançamento da obra. 

Atualmente, o cenário mais fértil para a produção da literatura afro-brasileira tem sido o movimento de literatura marginal, que surge como alternativa ao sistema editorial existente, pois se opõe ao cânone e é veiculada à margem do mercado editorial tradicional. Essa literatura também dá ao negro o papel de agente principal na sua história. Há uma mudança de paradigma e o intuito é, portanto, sair do anonimato e se conceber como aquele que tem voz e fala e não aquele de quem se fala, ou seja, deixar de ser objeto para ser sujeito. A literatura afro-brasileira é um campo fértil para reflexões sobre a condição da população negra e sua representação nas artes, de autoria própria e não condicionada à perspectiva do homem branco. Há ainda um vasto campo de pesquisa sobre literatura, a partir das publicações organizada pelo Quilombhoje, reunidas na linha editorial de Cadernos Negros. 

Cadernos Negros é referência em se tratando de revelar grandes talentos da literatura negra e Afro-Brasileira, como a escritora Conceição Evaristo, que publicou pela primeira vez na edição número 12, no ano de 1990. Muitos escritores e escritoras tem em comum sua iniciação literária publicando em Cadernos Negros. 

Ao longo dessas quatro décadas, Cadernos Negros se firmou como um espaço de resistência literária, social e política, agregando autores e autoras negras em âmbito nacional, afirmando o volume e a qualidade da produção literária negra e afro-brasileira, constituindo-se em uma possibilidade para que escritores negros possam publicar suas narrativas e, coletivamente, difundir sua obra em um país marcado por uma política de criação e difusão literária branca, elitista e machista.

Literatura e raça

O racismo no Brasil se manifesta inclusive no campo literário. A literatura brasileira, ao longo da história, perpetua o legado de pobreza e estigmas que contribuem com os processos de inferiorização e marginalização da população negra. 

Regina Dalcastagnè, doutora em teoria literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), destaca-se por avaliar, em suas pesquisas, aspectos de desigualdade social na literatura brasileira. Em seu livro, “A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004”, sua mais expressiva pesquisa, analisou 258 obras publicadas pelas grandes editoras do país entre 1990 e 2004, traçando um importante perfil a cerca do gênero, etnia e classe social, tanto dos autores quanto das personagens.

Algumas importantes constatações da pesquisa: 

  • Representatividade: As personagens brancas totalizam 92%. A pesquisa aponta também que em 56,6% dos romances levantados, não há nenhuma personagem negra, enquanto em somente 1,6% não há personagens brancas.
  • Intelectualidade: Os personagens brancos representados nos livros costumam ser os sujeitos mais intelectuais dos romances. Entre os negros, somente 17,3% pertencem à elite intelectual.
  • Perfil econômico: Foi verificado que 73,5% dos personagens negros são retratados como pobres e 12,2% como miseráveis.
  • Criminalidade: Dentre as personagens, 33,3% das crianças negras e 56,3% dos adolescentes negros eram dependentes químicos.
  • Etnia e gênero: Dos autores 93,9% eram brancos e 72,7% eram homens.

Esses dados evidenciam que, na literatura brasileira, há a hegemonia histórica de uma narrativa branca, masculina, elitizada e estereotipada. Essa predominância pejorativa da forma de se representar pessoas negras solidifica no imaginário social coletivo estigmas sobre quem são essas pessoas, os espaços sociais que devem ocupar e como devem ser tratadas. O que, grosso modo, caracteriza o racismo estrutural.

O panorama traçado por Regina Dalcastagnè já era perceptível para escritores e escritoras negros que, dentro e fora do ambiente acadêmico, questionavam os estigmas e a ausência de representação e representatividade negra na literatura brasileira. 

Foi nesse contexto de resistência e empreitada pela construção de um espaço legítimo para as narrativas afro-brasileiras que, em 1978, foi criada a série Cadernos Negros, que completa 45 anos de existência.

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