Enquanto pisarmos no chão, nossos batuques não se calarão!

                              

 Rick Ovelha | Coverador

“Hoje é manhã de carnaval. Solte o sorriso e vem de novo. Trago um grande aviso ao nosso povo, que Quilombo já vem por aí!” Assim cantava o Quinteto em Branco e Preto, oriundos da zona sul e leste da capital, na composição de Maurílio de Oliveira e Zé Luiz. E como era bom poder correr pela cidade em meio à alegria. Ver o sorriso no rosto das crianças entre confetes e serpentinas, saudando a doce ilusão da folia.

O nosso carnaval sempre foi sinônimo da luta de quem trabalha o ano inteiro em mutirões e que, nestes três dias, finaliza a sua obra na avenida ou nas ruas da periferia. Todo o espetáculo que a mídia transmite não se compara à riqueza cultural, econômica e social que a maior festa brasileira proporciona aos trabalhadores anônimos que embarcam sem exitar nos festejos populares.

É impossível falar desta festa popular em São Paulo sem ressaltar os nossos baluartes. Aquelas e aqueles que fizeram jus ao que chamamos hoje de “Carnaval”, que teve seu início de forma organizada no começo do século XX. Eram os “Cordões Carnavalescos”. O Cordão da Barra Funda (Grupo Carnavalesco da Barra Funda) e o Cai-Cai foram os precussores deste modelo que, mais tarde, deu origem às escolas de samba tradicionais do carnaval paulista: Camisa Verde e Branco, Lavapés e Vai-Vai. Em sua maioria, eram inspiradas no samba rural paulista. No Batuque de Pirapora, Samba de Piracicaba, Tietê, Campinas, entre outros.

De Madrinha Eunice a Geraldo Filme. De Dona Olímpia a Dionísio Barbosa. Seu Carlão do Peruche, Seu Nenê, Osvaldinho da Cuíca, Toniquinho Batuqueiro, Talismã, Zeca da Casa Verde, Jangada, Lacrilio, Inocêncio Mulata, Tobias, Daniel da Ilha, Di Galvão, Xangô da Vila Maria, Pato N’água. Fredericão, Seu Leandro de Itaquera e Nenize, enfim. Todas e todos que sofreram os horrores de duas ditaduras, as mais cruéis torturas e violências que estão impregnadas no racismo estrutural e institucional que sempre assolou o povo preto e a cultura marginal periférica.

Seu Carlão do Peruche conta no livro “Um Batuque Memorável no Samba Paulistano”, do escritor Carlos Gomes, como a repressão lhe custou três costelas quebradas e uma série de escoriações pelo corpo. Seu crime? Fazer samba e espalhar a cultura no Parque do Peruche, zona norte de São Paulo e na Escola de Samba Lavapés. Mais tarde, Carlão se tornaria fundador da escola de samba Unidos do Peruche.

Nos tempos atuais, não tivemos o nosso carnaval por conta do novo coronavírus. Escolas de samba, blocos de rua, cordões carnavalescos e afoxés tiveram que fazer lives para amenizar um pouco a situação atual em que vivenciamos. Entretanto, a quarta-feira de cinzas impera na cidade cosmopolita desde o ano de 2020.

A grande gama de trabalhadores independentes da cultura sofrem com o cancelamento do carnaval e a prefeitura não propõe nenhuma ação para os verdadeiros ícones da nossa economia. Na Câmara Municipal foi proposto pela prefeitura um auxílio emergencial vexatório de 100 reais por membro de família.

Segundo a Prefeitura, 1,7 milhão de pessoas seriam beneficiadas. O que sabemos muito bem é que o auxílio proposto não supre as necessidades do nosso povo e nem a renda que os trabalhadores necessitam para a sua sobrevivência.

Uma pesquisa realizada pela Rede Nossa São Paulo afirma que, em todas as regiões da cidade, predomina a opinião de que declarações de políticos de cunho racista estimulam o racismo na cidade. A pesquisa ainda aponta que a percepção sobre o racismo aumentou na cidade após casos de repercussão como o de George Floyd.

A população entende que o debate precisa estar sempre em voga e políticas efetivas de combate ao racismo devem ser promovidas de forma afirmativa na cidade de São Paulo.

O carnaval consegue evidenciar e expor a luta que o povo negro faz em combate a desigualdade social e econômica, racismo estrutural e institucional, feminicidio, transcídio e genocídio que são realidades dos nossos becos, comunidades e favelas desde que o mundo é mundo. A arte e a resistência preta expressas nas nossas cores, tambores, gingados e composições são resultados da nossa capacidade coletiva e criativa de externalizar, sintetizar, poetizar a vida e as relações sociais nas suas contradições.

Por aqui continuaremos em combate ao vírus e mais do que nunca contra a deturpação da nossa cultura popular. Sabendo que, como no passado, a coletividade e a organização serão fundamentais para que, muito mais do que resistir, possamos continuar existindo e mostrando o quanto a cultura popular e ancestral é necessária para o nosso povo continuar sonhando com um projeto diferente de mundo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima